Aquele foi um final de semana de lascar, ainda não se acredita na enormidade da tempestade que caiu. A velocidade atingida pelos ventos deixou a todos assombrados e o que se conta é que não sobrou um varal de roupas intacto pra contar história e que algumas casas viram suas telhas irem pelos ares, rodopiando entre lençóis coarados e panos de prato com estampa de frutas. As galinhas foram recolhidas às pressas e se salvaram, a maioria passa bem. Algumas crianças, no entanto, com a temeridade que lhes é peculiar, ainda quiseram aproveitar a ventania pra colocar pipas coloridas no ar e soube-se que estão de castigo ajoelhadas no milho até agora, que é pra "aprender a não matar a mãe de susto".
A tempestade começou na sexta feira à tardinha, antes mesmo do comércio baixar as portas. No início era apenas garoa mansa que foi cobrindo cada superfície exposta com gotículas de água gelada. No céu, viam-se nuvens cinzentas e opressivas, como se fossem uma preocupação instalada. Daquelas que latejam o dia inteiro no sombrolho franzido, que não são urgentes, mas que não desaparecem enquanto o problema não é solucionado. No máximo dão uma ou outra trégua.
Quando as piores tomentas se aproximam, pensa-se que o tempo não pode ficar pior do que aquele ar abafado comprimido sob o céu cinza-preocupação-instalada e aguçado pela brisa enregelante-de-arrepiar-a-espinha. Mas fica. A mudança acontece de um jeito lento, como caminhar dentro d'água, como a solução pra preocupação-instalada-opressiva apontando no horizonte, feito nuvem de poeira que os olhos céticos bombardeiam racional e metodicamente pra garantir que não se trata de miragem. E quando concluem que é real, a tormenta é iminente, e mal há tempo pra correr. Foi o que aconteceu daquela vez.
A água, precedida pelo vento, veio qual se fosse despejada sobre o solo para lavar alguma sujeira pegajosa ou matar afogado quem ou o que se encontrasse no caminho e não fosse rápido o suficiente na fuga. Certamente carregou com ela alguns pobres seres incautos, faça-se por eles um minuto de silêncio respeitoso-que-deus-os-tenha. Mas celebre-se, com igual deferência e ainda maior comoção, a notável força renovadora contida na enchente e na tempestade, que passam arrastando os cacos inúteis do passado e instilando vida às terras áridas como se jorrassem com poder curativo sobre feridas purulentas e mal cicatrizadas incrustadas no solo.
Açoitadas pela chuva e pelo vento, as noites foram árduas. Luzes cortavam o céu e estrondos reboavam incessantes, assustando até os mais destemidos e interrompendo o sono dos inocentes, que acordaram sobressaltados e fitaram o teto vazio por muito tempo, incapazes de conciliar novamente o sono, aterrados com os raios e com o furor da chuva.
Os dias, por sua vez, foram os mais longos possíveis. As crianças presas em casa, os cachorros amuados sob as camas, a antena da televisão produzindo apenas estática, os telefones mudos. Os pensamentos perderam-se entre rezas pra que o telhado aguentasse e a água não invadisse a sala, e a inquietação sobre a sorte daquele ente querido que a chuva surpreendera lá fora e ainda não tinha dado notícias.
Pensou-se que a chuva não pararia mais e que estava tudo perdido.
"Oh, senhor, não nos abandoneis neste momento!" - foi a litania repetida, incansavelmente.
E então, no terceiro dia, a chuva finalmente cessou. A ausência do ressoar dos pingos no telhado e a visão dos tímidos raios de sol que surgiam aquecendo e carregando consigo um facho de esperança causou emoção incontida. A casa tinha resistido, o filho estava a salvo, o sofá permanecia intocado pela água e até o lençol branco jazia no quintal, enxovalhado, mas nada que sabão e sol na dose certa não resolvessem. Até mesmo aquele exilado do outro lado da poça tinha dado notícias. Tinha passado as noites em claro, estava abatido e faminto, mas vivo e são.
E o sol, depois de se insinuar delicado por algumas horas, criou coragem e tomou tudo, se espalhando radiante sobre todas as coisas e em todas as frestas, como se comemorasse a chance de fazer o novo viscejar no lugar dos escombros que haviam sido arrastados pra longe. O calor reluzente em contato com a água empoçada, tornou o ar úmido e quente, daqueles que envolvem, fazem suar o couro cabeludo e os olhos embaçarem.
Neste momento, uma menina de tranças escuras está sentada ali adiante sob o sol, sorrindo enquanto contempla as nuvens que dançam balé, ora em forma de tigre, ora de dragão. E, embora ela saiba que a garoa deve voltar nos próximos dias, ouviu a previsão do tempo dizer: o próximo final de semana será quente e ensolarado. E essa certeza é suficiente pra deixá-la feliz.
2 comentários:
Sempre gostei de tempestades!
"Pelamordi" dona Liv!! Soberbo!! E tanto, que senti a textura do lençol enxovalhado, escutei o murmúrio choroso da litania e quis estar lá, pra ver o sorriso da menina. Tomara que não chova de novo!!!!
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